sexta-feira, 4 de março de 2011

Quais são as Mãos de seu Senhor - Reflexões sobre a Doutrina de Deus

É uma vergonha que alguns cursos de teologia ainda concentrem sua grade de matérias na perspectiva da idade média. Os seminários de teologia “meia-boca” tendem apenas a ruminação teológica, não é teologia, apenas assimilação e reprodução de conteúdo. Não é preciso ser um gênio para saber que a doutrina histórica da trindade não revela nada de útil para a vida cristã; que o conhecimento dos atributos de Deus não tem o poder de transformar nossas vidas, e que, tentar perscrutar os decretos de Deus, não aumenta nossa intimidade com o Pai. Esse é o principal motivo porque essas questões não são abordadas na Bíblia.
Mas como se tornaram tão relevantes? Porque ainda são reproduzidas? São teologias de gabinete, escritas e reproduzidas por pessoas que não pensam a vida, que não relacionam o homem com Deus, que creditam sua fidelidade cegamente aos dogmas e doutrinas sem nem ao menos perguntar por sua viabilidade, durabilidade, extensão e aplicabilidade. Embora algumas doutrinas possuam valor absoluto, sua aplicabilidade pode ser relativa, sua extensão e viabilidade podem ser discutíveis.



Para compreender a elasticidade da doutrina precisamos situá-la socialmente. É um código de conduta dirigida a homens e mulheres com objetivo educacional. Para entender essa questão precisamos responder às seguintes perguntas: Quando essa doutrina de Deus foi formada? Por que? Os primeiros cristãos precisavam acomodar sua fé com as pressões judaizantes e romanas. Os judaizantes defendiam a unicidade de Deus e contestavam a divindade de Cristo, já os romanos aceitavam a idéia de Jesus como Deus, mas recusavam a idéia de um Deus homem que morreu numa cruz.
Paulo retrata essa divergência com o termo loucura e escândalo (1Co 1:23). Diante dessa crise os Pais da Igreja seguiram os passos da teologia alexandrina (Ligação da Filosofia com a Teologia). Aos poucos a ameaça judaizante foi-se desfazendo e as defesas da fé feitas por Justino o Mártir elevaram a teologia ao mundo filosófico, ao campo de defesa por idéias. Justino precisava defender os cristãos dos ataques romanos, que eram feitos por filósofos contratados pelo Estado para ridicularizar os cristãos. Assim as defesas da fé ganharam o palco da oratória ao mesmo tempo que perdiam seu caráter vivencial. Com isso o cristianismo cai na reprovação dos profetas, principalmente de Oséias (Os 4:1-6; 6:6; Is 1; e outros).
A consequência dessa mudança foi o confinamento da doutrina de Deus ao mundo filosófico. Esse confinamento durou até a reforma quando Lutero desenvolveu a teologia da Cruz. Lutero havia encontrado a grande lacuna teológica: o Deus revelado foi trocado pelo Deus absconditus. O Deus revelado depende da fé, enquanto que o Deus absconditus da razão; o Deus revelado é reconhecido por seu amor à criação, o Deus absconditus é reconhecido por seus atributos de grandeza e majestade; o Deus revelado é reconhecido pela Cruz, o Deus absconditus pela Glória.
Lutero viu que a teologia tornou-se uma prisão opressora que impunha seus ensinamentos sobre o Deus absconditus; viu também que esse Deus não é o Deus revelado, mas o Deus oculto (Absconditus - inacessível), cheio de gloria e majestade, muito diferente do Deus revelado nascido numa manjedoura.
Para o teólogo da cruz a questão não é ficar meditando sobre o ser de Deus. Ele não se interessa por uma doutrina a respeito das qualidades de Deus, por exemplo, que em lugar de atos vivos coloque abstrações estáticas; ele inclusive a considera extremamente perigosa. Deus não quer ser reconhecido em suas “coisas invisíveis”, e sim, em suas “coisas visíveis”. (LOEWENICH, 1988, p.16).       
            O segundo passo na formação de uma doutrina é sua absolutização. Toda lei ou doutrina, no começo, possui papel educacional, mas com o tempo perde seus elos e passa a ser algo restritivo. O tempo solidifica os conceitos de forma a transformá-los em dogmas incontestáveis. Infelizmente a teologia da cruz, escrita por Lutero, seguiu esse caminho. Aos poucos, a igreja luterana, foi assumindo uma postura dogmática mais próxima da Igreja Católica Romana, e novamente a teologia da glória e do Deus absconditus supera o Deus revelatus. A doutrina de Deus que responde às necessidades intelectuais assumiu o lugar da doutrina bíblica de Deus.
            Em nossos dias, no Brasil, a teologia do Deus absconditus impera na maioria dos seminários, mesmo naqueles que pretendem seguir os passos da Teologia da Cruz escrita por Lutero.  Infelizmente o Brasil tem muito pouco conhecimento do Deus revelado. Todos os grupos desde tradicionais a evangélicos neo-pentecostais procuram conhecer o Deus absconditus e se esquecem do Deus revelatus. As doutrinas não são mais pensadas e avaliadas, apenas repetidas. Diante dessa crise aponto algumas notas relevantes para construção de uma doutrina de Deus que corresponda às necessidades do Brasil.
1.    É preciso resgatar as principais afirmações bíblicas sobre Deus. Nesse ponto até podemos usar as análises da teologia tradicional, mas com cuidado, sempre observando a bíblia em primeiro lugar, procurando olhar para as novas teologias do séc.XX, e separar as principais afirmações observando a ordem literária e teológica do texto. Ex:
a.    “Eu Sou” – Esse título é o reconhecimento da ação salvifica de Javé. É por ele que o povo conhece o libertador do Egito; é por ele que o povo se une, forma e depõe a monarquia; é a principal idéia teológica dos provetas; é usada também pelos governadores do período exílico e pós-exílico; é também um termo muito usado no novo testamento; João usa-o em relação à Jesus.
b.    Deus é Santo – Outro conceito muito relevante. Para os profetas, ser santo não significa religioso ou separado, mas íntegro, puro e justo. Não significa que Deus quer sacrifícios, o que os profetas revelaram é que Deus queria conhecimento íntimo (Os 6:6); Ser santo/justo é uma apelo à santidade/justiça. Esse conceito é muito bem entendido na pessoa de Jesus e no novo testamento onde há um grande esvaziamento das doutrinas e rituais judaicos.
2.    É preciso entender quais são as principais afirmações sócio-religiosas sobre Deus. Quais são as principais afirmações teológicas da atualidade? Separei cinco pensamentos relevantes que acredito definirem a teologia da atualidade:



1 – Deus-Quadro. Atualmente as pessoas tendem a tratar Deus como se fosse um quadro, uma pintura. As pinturas não são a realidade, mas tentativas humanas de capturar a realidade. A questão é que muitos cristãos de nossos dias tendem a se relacionar com Deus como se fosse um quadro, elas capturam apenas o que lhes atrai, prendem em um quadro e usam quando e como querem. Elas não conhecem e nem querem conhecer a Deus, tudo que elas precisam está em seu quadro, tendem a colocar apenas as bênçãos e excluem as advertências e reprovações. No fim, sua imagem de Deus passa a ser uma imagem distorcida de seus desejos. Quando precisam, posicionam-se diante do quadro e ficam admirando-o, pensando nas coisas que ali estão manipulando-as, trocando o quadro de lugar, de forma que lhe atendam. Quando estão incomodadas com algum aspecto do quadro, simplesmente retiram-no, viram-no trocam-no de lugar. Deus passou a ser um quadro manipulado ao bel prazer de seu dono.
2 – Deus-Imagem. Não é preciso uma imagem para ser um adorador de imagem. Qual a diferença entre um adorador de Deus e um adorador da imagem de Deus? É simples: a imagem não fala. Assim, o adorador da imagem de Deus fala com a imagem e não houve nada, pois imagem não fala. O adorador de Deus fala e ouve Deus. Dessa forma, quando uma pessoa que diz crer em Deus, não ouve (atende) a Deus, está na realidade falando com uma imagem. Quando eu não ouço transformo o outro em um ninguém.
3- Deus lâmpada mágica. Deus pode atender a todas as suas necessidades. Essa afirmação não é mentira, mas será que Deus quer atender todas as suas necessidades? Deus tem sido tratado como um gênio da lâmpada magia de Aladim. Basta apenas uma esfregadinha que Ele aparece e resolve todos os meus problemas.
4 – Deus bola de Cristal. Guardada no Bolso, só é acessada quando precisamos dela.



5 – Deus caixa eletrônico. Você já pediu dinheiro para o seu pai? Foi fácil? Sei que não. Quando precisamos de dinheiro e temos de pedir a nossos pais temos muito vergonha, geralmente pensamos várias vezes se realmente necessitamos e procuramos nos aproximar para poder pedir. Se você não participasse nem ajudasse em nada na sua casa, fosse um completo inútil, você teria coragem de pedir dinheiro ao seu pai? E se você fosse pai, daria a um filho omisso que não faz nada para colaborar com a família? Essas questões nos posicionam num ângulo interessante: porque não temos vergonha de pedir dinheiro a Deus, ou de pedir sua ajuda sem fazer nada para apoiar seu reino? Simplesmente falta de vergonha na cara “cara de pau”, isso porque na realidade, Deus não é tratado como uma pessoa, mas como uma coisa, como um caixa eletrônico. Eu vou até ele coloco o cartão e espero meu dinheiro, não há trocas, relacionamento ou valores morais, mas se Deus fosse tratado como pessoa, pesaríamos, com nosso pai, o que Ele pensará de mim? Mas quando é tratado como coisa, essa consideração é descartada.
6 – Deus oni-ausente. A doutrina tradicional e clássica afirma que Deus é oni-presente, mas a realidade é bem diferente. Como será que seria nossas vidas se Deus estivesse em todo o lugar? Será que nossa vida mudaria? Nossos comportamentos? Nossos relacionamentos? Atitudes? A realidade é que afirma-se que Deus é onipresente e vive-se como se fosse oni-ausente.
Para que haja mudança é preciso confrontar os conceitos populares com os conceitos bíblicos. Nesse processo devemos contextualizar a palavra com a experiência e a prática.  Uma doutrina de Deus relevante deve ser em primeiro lugar se reencontrar na Bíblia, fazer releituras contemporâneas e atualizar seus padrões e conceitos a partir da compreensão dos conceitos populares e seus desvios. Em segundo lugar, o relacionamento com Deus deve assumir o primeiro lugar na compreensão teológica. O Deus absconditus deve ser substituído pelo Deus revelatus. Em terceiro, os conceitos errados e suas falácias devem ser confrontados com os novos conceitos atualizados pela releitura bíblica e social. Apenas dessa forma poderemos reconstruir uma teologia séria e capaz de evangelizar “verdadeiramente” nossa nação.